Quando o cérebro não se desenvolve

A decisão do STF de permitir a realização do aborto de embriões ou fetos anencéfalos trouxe à tona discussões bioéticas sobre a intervenção na gravidez, e as consequências emocionais do problema para a gestante.

Marina Vieira Souza e Paulo Fávari

No último dia 12 de abril o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o aborto de anencéfalos, embriões ou fetos que não têm crânio ou cérebro, não constitui crime. Com a decisão, grávidas nestes casos não precisam mais de alvará judicial para realizar o aborto, apenas da comprovação de anencefalia, possível por meio de ultrassom.

Thomaz Gollop, livre-docente em Genética pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), coordenador do grupo de estudos sobre o aborto da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e membro do Instituto de Medicina Fetal (IMF), aprova:

“Evidentemente, é uma decisão de enorme importância. É o que a gente esperava: ter uma decisão favorável, respeitando a autonomia da mulher”.

Kim Chong Ae, geneticista da FMUSP, completa:

“Não tem sentido não ter a opção de escolha. O feto não tem cérebro, não tem o que fazer”.

Já no primeiro mês de gravidez, por uma falha de desenvolvimento que leva ao fechamento do tubo neural, o feto cresce sem a caixa craniana e sem o cérebro. Kim explica que o motivo da falha depende de muitos fatores. “A anencefalia  pode vir junto com outras malformações. Ela tem um fator genético, mas que pode ser influenciado pelo fator ambiental. A causa ainda não está bem esclarecida”.

Riscos para a mãe

A gravidez de anencéfalos é diferente de uma normal não apenas em função da malformação do feto, mas traz também maiores riscos para a saúde da gestante. Entre as complicações decorrentes estão lesões na mulher durante o parto e hemorragia pós-parto, excesso de líquido, aumento da pressão arterial na mãe e erro de posição no feto, enumera Gollop.

A expectativa de vida do feto, por outro lado, também é muito limitada. “São dias e eventualmente, mais raramente, semanas. Isso levando em consideração que mais da metade morre dentro do ventre materno”. É uma falha no desenvolvimento que inevitavelmente leva à morte.

Entre os mitos que envolvem o assunto está o de que esses fetos têm algum tipo de reação a estímulos ou sentimentos. Gollop rechaça a tese “isso é absolutamente impossível, pois qualquer sentimento ou relação humana depende do cérebro”.

Gestando luto

Ainda assim, a anencefalia não significa que o feto esteja morto – ele vive, mas como um organismo vegetal, sem consciência, até que morre, ou no próprio útero, ou algum tempo depois de nascer. Esse, aponta Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) do Instituto de Psicologia (IP) da USP, é um dos agravantes para os conflitos éticos que cercam a condição.

“Pode surgir a ideia de ‘será que estou assassinando [o feto]?’”, conta.

Para ela, a decisão do STF foi “perfeitamente sábia, e já era necessária há muito tempo”.

Do ponto de vista psicológico, explica, a anencefalia traz uma situação de crise para os envolvidos. Seja o momento da descoberta, a ocorrência de aborto (natural ou induzido) ou a morte do bebê depois de nascido, todas estas ocasiões levam a um processo de luto por parte da família.

Segundo a pesquisadora, o impacto é muito forte e pode fazer com que os pais se questionem: “Por que isso aconteceu conosco? O que fizemos de errado?”. Alguns encaram o caso como um castigo, outros como uma provação necessária.

Há ainda o embate com as crenças religiosas, que tendem a defender a sacralidade da vida, não sob posse do ser humano, mas da figura divina. Para a docente, os fundamentalistas são os mais fechados ao debate que surge quando está em jogo uma vida precária, sem chances de continuar.

Por tantos questionamentos e aflições, Maria Júlia analisa:

“Deveria haver um protocolo de ação psicológica, uma proposta de cuidado para lidar com o aborto. E investimento ainda maior na prevenção”.

É o que aponta também a pesquisadora Kim Chong. Segundo ela, a área de genética pode ser usada para diagnosticar e previnir malformações e falhas no desenvolvimento do bebê. “É importante que todo casal tenha o direito de ter filho. E o sonho de todos é ter um filho perfeito”, declara.

Há um consenso entre todos os profissionais de que o aborto é uma questão que precisa ser mais discutida sob a luz da bioética, e não ignorada por conta de tabus ou dogmas tradicionais. “Espero que a decisão do STF no caso da anencefalia encaminhe a abertura para discussões sobre outras doenças graves, que também não têm cura”, opina Kim, complementada por Maria Júlia: “O aborto é um evento que precisa ser discutido com cuidado, compreendido, e não julgado a priori”.

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